O São Paulo Futebol Clube iniciou oficialmente a jornada pelos campos de futebol no dia 16 de março de 1930, há 88 anos, em um jogo na Chácara da Floresta contra o Clube Atlético Ypiranga, pela abertura do Campeonato Paulista daquela temporada. A partida não teve gol algum marcado, mas foi um marco que mudou para sempre o esporte no Brasil.
No ano anterior, o Club Athlético Paulistano, então maior campeão paulista (11 títulos), deixou para sempre o futebol de primeiro nível e o Tricolor herdou não somente os torcedores, desamparados pela decisão do time alvirrubro, como também os jogadores que tão grande sucesso obtiveram pelo clube do Jardim América.
Por outro lado, o São Paulo, que surgiu no dia 25 de janeiro daquele ano, nasceu em berço de ouro, teve por testamento o espólio de outra grande equipe da era amadora do futebol: da Associação Athlética das Palmeiras, o Tricolor recebeu o direito de usufruir da Chácara da Floresta – então, a melhor praça de esportes da cidade.
(Arquivo Histórico do São Paulo FC)
As primeiras movimentações esportivas da nova agremiação foram anunciadas em jornais paulistanos no dia 1º de fevereiro e marcadas para o dia seguinte: aparentemente um simples treinamento no campo. A convocatória solicitou a presença 38 jogadores: Abate, Alves, Angelo, Annibal, Arthur, Barthô, Caetano, Clodoaldo, Cassiano, Duilio, Formiga, Faria, Infante, Jayme, Jahu, Joãozinho, Lara, Lima, Luizinho, Mario, Miguel, Milton, Nestor, Nettinho, Olavo, Octacílio, Passos, Romeu, Roque, Rueda, Seixas, Scott, Serrote, Sergio, Trigo, Villela, Waldemar e Zuanella.
A maioria deles, claro, provenientes do Paulistano e da Palmeiras, mas também provavelmente alguns atletas livres. Sabe-se que eram, antes, do Paulistano: Abate, Arthur (Friedenreich), Barthô (embora estivesse vinculado ao Corinthians), Caetano, Clodoaldo (Clodô), Cassiano, Formiga, Jahu, Joãozinho, Lima, Luizinho, Mário, Miguel, Milton, Nestor, Nettinho, Romeu, Rueda, Seixas e Zuanella. Da Associação Athlética Palmeiras vieram, reconhecidamente, Alves, Faria, Octacílio, Scott, Serrote e Waldemar (Zecchi).
Contudo, além desses, Amadeu, Zito, ex Palmeiras, Araken Patusca e Siriri, ambos do Santos, também foram ao treinamento, mesmo sem convite público. Aliás, longe de meramente um treino, o que se deu na Chácara da Floresta naquele 2 de fevereiro foi verdadeiramente uma peneira. Após uma primeira seleção, o então comandante técnico são-paulino, João Chiavone, montou duas equipes, uma com trajes da Associação Athlética das Palmeiras e outra com as cores do Clube Athlético Paulistano, e as colocou em confronto em um jogo-treino.
(Arquivo Histórico do São Paulo FC)
As turmas estavam assim constituídas: Palmeiras (camisa preta) – Nestor; Clodô e Barthô; Sergio, Rueda e Abate; Luizinho, Octacílio, Joãozinho, Jahu e Passos. Paulistano (camisa branca) – Olavo; Lara e Trigo; Angelo, Amadeu e Alves; Siriri, Serrote, Friedenreich, Araken e Scott. Ao final da peleja, o time da AAP saiu vencedor por 4 a 1. Reza a lenda que, por ter deixado os atletas Friedenreich e Araken Patusca no time com os reservas, o treinador João Chiavone foi demitido pela diretoria, não chegando a dirigir o Tricolor em nenhuma partida. Não é possível referenciar essa história, todavia, até mesmo por ser oficialmente desconhecido o técnico do time nos primeiros jogos de 1930.
Outros treinos se sucederam no mês de fevereiro (não era uma rotina diária – lembrando que o profissionalismo só surgiu em 1933), nos dias 6, 9, 14… e outros atletas foram tomando parte enquanto alguns deixavam de comparecer. Friedenreich, inclusive, faltou em um destes para se alinhar no time do Santos em amistoso contra a Seleção de Tucumán, da Argentina, no dia 9 daquele mês.
De todo modo, a espinha dorsal do time já estava decidida. Restava apenar definir o dia da estreia oficial do Tricolor. Cogitou-se um amistoso contra o Palestra Itália ou contra o Vasco da Gama, a convite deste, no Rio de Janeiro, conforme relatos da imprensa, mas tais partidas não ocorreram naquela época.
(Arquivo Histórico do São Paulo FC – A Chácara da Floresta sob a luz de refletores)
Dois fatos contribuíram para o São Paulo não ter estreado oficialmente ainda em fevereiro de 1930. O primeiro foi a vultosa reforma da Chácara da Floresta (custou mais de 100 contos), com instalação de arquibancadas totalmente novas (as plantas elaboradas nos Estados Unidos) e de torres de iluminação – os primeiros sistemas fixos deste tipo em um estádio brasileiro (a primeira partida noturna sob refletores ocorreu ali no dia 28 de março de 1930, com a vitória do Combinado Paulista sobre o Sportivo Buenos Aires por 8 a 1).
O segundo fator foi que, apesar ter o elenco definido, a papelada tardou a ficar pronta. Os primeiros atletas foram registrados na Associação Paulista de Esportes Atléticos somente no dia 12 de fevereiro e os principais nomes, como Friedenreich e Luizinho, não faziam parte, ainda, dessa relação. Mesmo fora do futebol e não participando da APEA desde 1925, o CA Paulistano tinha que liberar os “passes” de cada jogador.
Herdeiro da Chácara da Floresta, o Tricolor manteve também a tradição de organizar o Torneio Início – peculiar competição e de mata-mata em que todos os times do campeonato se enfrentavam em um único dia, em jogos de poucos minutos e que possuía número de escanteios como critério de desempate. Por não se tratar de um campeonato oficial, os tricolores puderam ir a campo mesmo sem registro federativo.
(Sérgio, Clodô, Nestor, Boock, Araken Patusca, Friedenreich, Zuanella, Rueda e Hugo (bandeirinha); Formiga, Serrote, Barthô, Siriri, Segatti)
Assim, no dia 9 de março de 1930, durante o Torneio Início realizado na Floresta, foi apresentado ao público o uniforme do São Paulo Futebol Clube: camisa branca com faixas vermelha, branca e preta a altura do peito, calção branco e meias pretas. – Antes disso, os treinamentos se deram com vestimentas do Paulistano e das Palmeiras.
E estreou muito bem. Na pequena partida válida pelas quartas de final, o Tricolor, escalado com Nestor; Clodô e Barthô; Abate, Rueda e Sergio; Formiga, Siriri, Friedenreich, Araken Patusca e Zuanella, bateu o Ypiranga por 3 a 0, gols de Formiga, Araken Patusca e Friedenreich. Na semifinal, o São Paulo empatou sem gols com o Guarani e se classificou para a final graças ao único escanteio que conseguiu. A final, contra o Palestra Itália, acabou em 1 a 1 (gol de Barthô), mas os são-paulinos perderam o caneco no mesmo critério de escanteios obtidos (0 a 2).
Tudo bem. Evento amistoso e festivo. Para valer mesmo só uma semana depois, no dia 16 de março: Abertura do Campeonato Paulista. Mais uma vez, São Paulo versus Ypiranga. Mas com time o Tricolor entraria em campo? Os vínculos dos atletas com a federação atrasaram e muito. Somente nos dias 12 e 14 de março é que (quase) todos os jogadores foram regularizados. (Do time do Torneio Início, Rueda, Siriri e Araken não foram inscritos).
(A Gazeta de 17 de março de 1930)
Apesar dos pesares, o grande dia chegara e a arquibancada da Chácara da Floresta estava repleta de torcedores, das mais variadas classes sociais. Como abertura do grande evento, o jogo preliminar entre os segundos quadros (futuramente aspirantes) das mesmas equipes acabou com um placar dilatado a favor dos tricolores: 7 a 3.
Nestor, Clodô, Barthô, Boock, Zito, Alves, Luizinho, Milton, Friedenreich, Seixas e Zuanella, então, entraram no gramado da Chácara da Floresta para representar o Tricolor no primeiro jogo oficial da história do clube. Neste confronto principal, porém, o São Paulo conheceu logo de cara um grande problema do futebol nacional: a arbitragem.
O Tricolor, que durante todo o segundo tempo atuou com um atleta a menos (Zito abandonara o segundo tempo devido a um mal-estar por extremo cansaço – não eram permitidas substituições, na época), teve um gol marcado por Luizinho (outras fontes dizem Clodô) anulado por Cid Rosso. O árbitro deixou de conceder, ainda, três pênaltis a favor do time local, cometidos em cima de Friedenreich. Não é de se espantar a reação dos torcedores, ao que se sucedeu: houve necessidade de intervenção policial, até.
(A Gazeta de 17 de março de 1930)
Mesmo com o resultado insatisfatório, apesar dos desfalques e atuação da arbitragem, o Tricolor não esmoreceu e já na rodada seguinte obteve a primeira vitória oficial da história do clube, logo com uma tremenda goleada: 6 a 1 em cima do Juventus, campeão da segunda divisão do ano anterior, gols de Barthô, Friedenreich (3), Luizinho e Zuanella.
O time são-paulino, desse jogo em diante, aliás, emplacou um recorde absurdo que perdurou quase quatro anos: marcou ao menos um gol em todo o jogo que disputou. Foram 355 gols em 104 partidas consecutivas realizadas entre 23 de março de 1930 e 29 de outubro de 1933. Jogadores daquele elenco também obtiveram marcas importantes. Friedenreich, Clodô e Luizinho emplacaram mais de 60 jogos consecutivos alinhados entre os 11 são-paulinos, desde a estreia deles.
Em 1930, os tricolores bateram na trave e não conquistaram nenhum título, mas logo na temporada seguida, sagraram-se campeões paulistas pela primeira vez. O primeiro de uma história repleta deles.
(A Gazeta – O time campeão de 1931: Ribeiro (massagista), Armandinho, Barthô, Bino, Araken Patusca, Clodô, Friedenreich, Luizinho, Sasso, Milton, Junqueirinha e Hugo (bandeirinha). Abaixado: Joãozinho)
Ficha do jogo
16.03.1930. Campeonato Paulista
São Paulo (SP), Estádio São Paulo Futebol Clube – Chácara da Floresta
SÃO PAULO Futebol Clube (SP) 0 x 0 Clube Atlético YPIRANGA (SP)Árbitro: Cid Rosso
SPFC: Nestor; Clodô/capitão e Barthô; Boock, Zito e Alves; Luizinho, Milton, Friedenreich, Seixas e Zuanella. Técnico: Desconhecido
CAY: Joãozinho; Ziza e Zaca; Japonês, Guanabara e Russel; Salvador, Guinda, Pierino, Barruso e Álvaro. Técnico: Desconhecido
(Arquivo Histórico do São Paulo FC – Zito, Boock, Clodô, Alves, Barthô, Nestor e Hugo (bandeirinha); Abaixados: Luizinho, Milton, Friedenreich, Seixas, Zuanella)
Jogadores inscritos
(Registro em que os goleiros da partida inaugural do São Paulo aparecem juntos em uma montagem. A curiosidade se encontra no fato de que Joãozinho se tornou jogador do Tricolor em 1931, após a séria contusão de Nestor, que teve que se aposentar dos gramados).