A história da decisão em que o Tricolor bateu o Corinthians por 3 a 1, e que completa hoje 60 anos, envolve muita rivalidade, brigas, mas também grandes ídolos e belos gols.
Após os cinco campeonatos estaduais conquistados no Pacaembu entre os anos de 1943 e 1949, o Tricolor foi campeão do Paulistão de 1953, na Vila Belmiro (com um 3 a 1 sobre o Santos), às vésperas do quarto centenário da Cidade de São Paulo, no dia 24 de janeiro de 1954. Os paulistanos passaram o aniversário do município a festejar mais uma glória são-paulina. O Municipal, contudo, só voltou a ver o São Paulo campeão novamente – e pela última vez – em 1957, já com as obras do Estádio Cícero Pompeu de Toledo, no Morumbi, a pleno andamento.
O Pacaembu em um Choque-Rei, nos anos 40 – A Gazeta Esportiva
O Tricolor, depois da infelicidade ocorrida no estadual do ano anterior, onde o time terminou com o vice-campeonato em jogo extra (havia terminado a fase regular empatado com o Santos na primeira posição, tendo perdido apenas uma partida até ali), viu o Campeonato Paulista de 1957 iniciar-se com outro rival disparando na liderança: o Corinthians.
Tudo bem que, como em 1956, o torneio naquela oportunidade tinha um regulamento alternativo, em que a primeira fase não valia muita coisa (eram 20 clubes e o estágio inicial, de turno único, classificava os 10 primeiros para a competição propriamente dita, de dois turnos). Nesse primeiro momento, o Tricolor não foi bem: perdeu logo na estreia para o Botafogo de Ribeirão Preto e até o fim dessa classificatória acumulou derrotas para o Juventus, XV de Piracicaba e Corinthians.
Justamente esse rival terminou a fase inicial arrebatador, com 13 vitórias em 19 jogos, sem nenhuma derrota. O Tricolor passou na quinta colocação (empatado em pontos com o Jabaquara, mas com uma vitória a menos). O elenco são-paulino, comandado pelo revolucionário técnico húngaro, Béla Guttmann, era bom. Mas havia algo, alguma engrenagem a ser completada…
O técnico Béla Guttmann, ao centro – Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube
A peça que faltava foi encontrada na figura de Zizinho, veterano craque do Bangu (à época, considerado o terceiro melhor jogador de futebol do Brasil em todos os tempos, somente atrás de Friedenreich e Leônidas, também tricolores), contratado pelo clube com o primeiro turno da fase final já em disputa.
O novo camisa dez estreou no torneio em 10 de novembro, contra o Palmeiras, e o resultado foi imediato: 4 a 2 para o São Paulo. Nos primeiros cinco jogos com ele em campo, o Tricolor não marcou menos de quatro gols por partida (completam a lista um 7 a 1 no XV de Novembro, um 6 a 2 no Santos, um 6 a 2 na Ponte Preta e um 5 a 3 novamente no time de Piracicaba).
Em verdade, com o Mestre Ziza, o São Paulo não voltou a perder no campeonato (foram 10 vitórias e dois empates, até o final). O ataque, formado por Maurinho, Amaury, Gino Orlando, Zizinho e Canhoteiro tornou-se opressor e, aliado ao já forte sistema defensivo de Poy, De Sordi, Mauro e Dino Sani (todos selecionáveis), tornou o Tricolor sério candidato ao título.
O craque Zizinho, que chegou em boa hora – Arquivo Histórico
O problema é que o Corinthians ainda estava disparado na ponta da tabela, e invicto. Para acirrar ainda mais a rivalidade entre as duas equipes, no jogo do primeiro turno da fase final (antes da chegada de Zizinho), terminado empatado em 1 a 1, Alfredo Ramos, ex são-paulino, acabou fraturando a perna em uma dividida com Maurinho. O fim daquele jogo foi de nervos a flor da pele, principalmente para o atacante Gino Orlando e para o corintiano Luisinho, que se estranhavam a todo momento.
No dia seguinte, Gino e outros tricolores foram visitar o antigo companheiro de clube, que estava internado no hospital. Após o encontro, Luisinho, que também fora visitar o colega, mas que resolvera se esconder atrás de uma árvore após ver os são-paulinos, atirou um tijolo à cabeça do centroavante do Tricolor, e fugiu!
Maurinho, Gino Orlando e Zizinho, um trio espetacular – Arquivo Histórico
Cmo seria o encontro deles, em um Pacaembu lotado, na última rodada do Campeonato? Agravado pelo fato de que, nesta “final”, dia 29 de dezembro, o Tricolor já havia conseguido igualar a situação de pontos na tabela. Uma semana antes, na Vila Belmiro, o Santos venceu o Corinthians e pôs fim a uma série de 35 jogos sem perder do time de Parque São Jorge, enquanto o São Paulo bateu o Palmeiras, por 1 a 0.
Quem vencesse seria o campeão; se empatassem, os dois times se juntariam ao Santos (que brevemente ficou na dianteira da pontuação, por um ponto, ao vencer a última partida dele um dia antes) e disputariam um triangular decisivo, então denominado “supercampeonato”.
Cena rara: sorteio de árbitro minutos antes do jogo / Arquivo Histórico
Como havia toda uma carga extra de polêmica e rivalidade posta em campo na partida decisiva, a Federação Paulista ousou e resolveu investir na melhor arbitragem que poderia adquirir. Pagou a quantia mais alta da história do futebol sul-americano até então pelo trio Malcher, Cross e Lynch – estes últimos, britânicos, que apitavam na Argentina. O juiz da partida somente seria escolhido momentos antes de começar a peleja, através de sorteio (os outros dois, tornar-se-iam bandeirinhas do jogo).
No aspecto técnico, o Tricolor talvez estivesse um pouco atrás do oponente na hora H, pois o importantíssimo Dino Sani se contundira e, para piorar, o suplente dele, Ademar, também havia se machucado. Só restava Sarará, que não jogara uma partida sequer no certame até então, para substituí-lo. Detalhe: Sarará estava afastado do elenco por desentendimentos com Béla Guttmann e teve que ser reincorporado nos últimos momentos…
Foguetório na entrada dos tricolores ao campo / Arquivo Histórico
Com a bola rolando, não deu nem cinco minutos de jogo e o primeiro “arranca-rabo” veio para por à prova o trio de arbitragem do jogo: Gino e Luisinho deixaram os seus recados um na perna do outro, em uma dividida.
Toda forma, talvez por haver menos pressão sobre os são-paulinos, levemente azarões, o Tricolor logo tomou conta do jogo e, assim, aos 17 minutos, forçou a queda do primeiro zero do placar: 1 a 0 com Amaury, que recebeu passe de Gino, avançou pela ponta esquerda e bateu sem chances para o goleiro adversário, encobrindo-o. Uma maestria!
Desnorteado, o Corinthians tentou ir ao ataque com tudo e por fim a desvantagem. Aberto, foi pego no contra-ataque um minuto depois do primeiro tento são-paulino. Amaury lançou Canhoteiro, que sozinho na ponta esquerda se desvencilhou do marcador, deixando-o sentado no chão, e chutou no canto direito do arqueiro corintiano, que pensava vir dali um cruzamento: 2 a 0!
Contudo, a pressão do rival se manteve e, aos 21 minutos, rompeu o cerco tricolor: 2 a 1. O cenário do jogo não se alterou até o final da primeira etapa, com a defesa são-paulina se sustentando firmemente. O segundo tempo foi na mesma toada, sem que, entretanto, aqueles em desvantagem tivesse qualquer chance real de ameaçar o São Paulo, que se defendia, ora com classe, ora como podia, por vezes dando balões para o alto mesmo, pois era jogo de campeonato.
Em um desses bicos pra cima, aos 34 minutos, Zizinho recebeu e dominou a pelota caída dos céus, passou para Gino, que de primeira repassou para Maurinho, mais ao fundo. Muitos ali, depois, reclamaram impedimento, mas o bandeirinha Lynch nada marcou (e toda a imprensa assim aprovou) e a jogada seguiu. O ponta-direita são-paulino ganhou na corrida de Olavo e chegou cara à cara com o goleiro Gilmar.
Maurinho parou e visou o guarda-meta rival. Diz a lenda que, naquele momento, o atacante do Tricolor indagou ao oponente em que canto gostaria que chutasse a bola. Isso mesmo: “Em que canto você quer?”.
Sem chance alguma para defesa. Gol do São Paulo! O terceiro do jogo, o que liquidava a partida. Na comemoração, Maurinho deu um tapinha no queixo de Gilmar, apontou e proferiu “Pega lá”. Foi a deixa para a maior confusão já vista no Pacaembu até os tristes eventos ocorridos na Supercopa São Paulo de Juniores, de 1995.
Socorro a um ferido por garrafa e prisão de meliante que invadiu o campo – A Gazeta Esportiva
Os corintianos paralisaram a partida por cinco ou seis minutos, reclamando da decisão do árbitro. O zagueiro Olavo chegou a agredir fisicamente o bandeirinha Lynch, mas nem expulso foi. Depois do ataque, os torcedores do Parque São Jorge começaram a atirar paus, pedras e principalmente garrafas em direção ao assistente britânico – sério, uma chuva de garrafas -, o que forçou o árbitro Malcher a solicitar a troca dos auxiliares para que a partida tivesse reinício.
Houve, ainda, necessidade de intervenção policial para acalmar os ânimos dos torcedores invadiram o campo e que digladiavam entre si nas gerais do Pacaembu.
A torcida corintiana não soube se comportar, enquanto a são-paulina só fez festa
Sem muito tempo para que acontecesse algo mais durante o jogo, logo o São Paulo sagrou-se Campeão Paulista de 1957. Quanto ao Corinthians, que até duas rodadas antes estava invicto, não restou nem o vice-campeonato, obtido pelo Santos. O técnico Brandão foi demitido e o maior artilheiro da história dos rivais, Cláudio, se aposentou. Trindade, presidente do time terceiro colocado, também não se reelegeu. Uma pequena crise plantada pelo Tricolor…
Quanto ao craque Maurinho, quando questionado pelos repórteres (lembrando que houve transmissão também pela televisão) sobre o lance capital da partida, o atacante afirmou que o goleiro Gilmar dizia para o companheiro Oreco o seguinte: “Oreco, dentro da área não, pois seria pênalti, mas fora da área pode dar pra quebrar as duas pernas deles, que cobrança de falta eu garanto”.
A resposta que o ponta-direita do Tricolor encontrou para essas palavras foi a bola do título dentro das redes adversárias.
Justa vitória. E, ah! O Palmeiras ficou em penúltimo – Folha da Manhã
29.12.1957. Campeonato Paulista
São Paulo (SP). Estádio Municipal de São Paulo – Pacaembu
SÃO PAULO Futebol Clube 3 X 1 Sport Club Corinthians Paulista
SPFC: José Poy; De Sordi e Mauro; Sarará, Victor e Riberto; Maurinho, Amaury, Gino Orlando, Zizinho e Canhoteiro. Técnico: Béla Guttman.
Gols: Amaury, 17’/2; Canhoteiro, 19’/2; Maurinho, 34’/2.
SCCP: Gilmar; Olavo e Oreco; Idário, Valmir e Benedito; Cláudio, Luizinho, Índio, Rafael e Zague.
Gol: Rafael, 21’/2.
Árbitro: Alberto da Gama Malcher
Renda: Cr$ 2.409.040,00
Público: 39.670 pagantes