Como o São Paulo inaugurou o profissionalismo no Brasil

Como o São Paulo inaugurou o profissionalismo no Brasil

Calendário 12/03/2024 - 08:08

O São Paulo teve a honra de inaugurar oficialmente o profissionalismo no futebol brasileiro, em 1933, em uma partida contra o Santos. O primeiro jogo dessa nova era ocorreu em 12 de março de 1933 e não podia deixar de ser uma goleada, para ficar bonito na história: 5 a 1 para o Tricolor sobre o Santos, lá na Vila Belmiro, com gols de Friedenreich, o primeiro desta categoria, Araken Patusca (2) e Waldemar de Brito.

A história do profissionalismo no Brasil se mistura com a história do próprio São Paulo Futebol Clube. O Tricolor nasceu da união de dissidentes e jogadores da AA das Palmeiras e do CA Paulistano, fiel defensor do amadorismo. Com a decisão desse último em abandonar o futebol quando a liga por ele fundada e defendida foi extinta (a Liga dos Amadores de Futebol, encerrada em 1929), os sócios e dirigentes ao esporte vinculados procuraram o clube da região da Chácara da Floresta para dar origem a uma nova agremiação que representasse a cidade e o estado no contexto futebolístico nacional.

O profissionalismo, porém, tardou ainda a surgir oficialmente: somente em 1933. No Rio de Janeiro veio à tona com a fundação da Liga Carioca de Futebol em 23 de janeiro de 1933 (que, entretanto, só realizou a primeira partida da organização em abril). Em São Paulo, a Associação Paulista de Esportes Athléticos, organizadora do principal campeonato do estado desde 1913, adotou o profissionalismo vinte anos depois, em 3 de março. A ata da resolução do Conselho Superior da federação registrou, no artigo sexto do novo regulamento, o texto: “Na “Divisão dos Fundadores” é permitida a remuneração oficial dos jogadores e os contratos destes com os clubes, devendo a turma principal de todos os clubes ser constituída em sua maioria por jogadores remunerados” (O Estado de S. Paulo de 5 de março de 1933).

(Ao contrário do que o texto faz parecer, o São Paulo não foi contra o profissionalismo, mas contra a proposta vencedora, que excluía a cobrança de ingresso de sócios. A proposta do Tricolor incluía todos os pontos acima, mais a questão de venda de ingressos para associados – ver abaixo)

Outras regulamentações surgiram ali e em resoluções imediatamente posteriores, definindo pontos como o número máximo de jogadores com contratos profissionais (22) e amadores (50), e também remunerações por dispêndio de tempo dos atletas em treinos ou viagens. O São Paulo, inclusive, sob figuras de Luiz Oliveira de Barros e Firmiano Pinto Filho, participou ativamente dessas novas regulamentações.

O único ponto defendido pelo Tricolor, que não foi posto logo de cara em vigor, foi a cobrança de ingressos para os associados dos clubes. Somente a AA São Bento votou a favor, junto ao São Paulo, por esta proposta. Contudo, bons anos depois, essa prática foi aceita.

Campeão Paulista em 1931 e vice-campeão estadual no ano seguinte, para essa nova temporada de 1933, agora fortificada pelo profissionalismo, o São Paulo se reforçou contratando grandes nomes, como Hércules e Raffa (do Juventus), Iracino (do Botafogo de Ribeirão Preto) e Sylvio Hoffmann, do São Cristóvão do Rio de Janeiro. A joia da coroa, todavia, foi a aquisição do brilhante Waldemar de Brito, junto ao Sírio. O centroavante terminaria aquela temporada com uma marca histórica, até hoje não superada: 49 gols marcados em 32 jogos! O que ajudou a contribuir para que o ataque daquele ano terminasse com a incrível média de 3,74 gols por jogo e 17 goleadas aplicadas (dentre o total de 34 jogos no ano).

As goleadas do Tricolor em 1933

  • 6 X 2, 5 X 1 e 4 X 1 no Santos;
  • 7 X 1 e 12 X 1 no Sírio (a maior goleada da história, placar repetido em 1945);
  • 5 X 2 e 3 X 0 no Fluminense;
  • 7 X 1 e 4 X 1 no Ypiranga;
  • 6 X 1 no Corinthians (além de dois 4 a 2);
  • 5 X 1 no Vasco da Gama;
  • 7 X 3 no Flamengo;
  • 7 X 4 no América-RJ;
  • 4 X 1 no Bangu;
  • 5 X 0 no São Bento;
  • 4 X 0 na Esportiva São José;
  • 5 X 2 no Sãomanoelense.
(A Platéa – Atleta do São Paulo desde 1930, Fried assinou o primeiro contrato profissional em 1933)

Mas sem se adiantar mais os fatos, é preciso voltar para aquele mês de março de 1933. Na véspera do jogo inaugural do profissionalismo, o Tricolor, recém-desfalcado do técnico principal, Eugênio Marinetti, que deixou o clube para treinar o San Lorenzo de Almagro, realizou um treinamento na Chácara da Floresta sob o comando dos veteranos ex-jogadores Formiga e Clodô, revelando ao público o plantel para a temporada.

Com camisas amarelas, alinharam-se Ismael; Sylvio Hoffmann e Iracino; Ferreira, Zarzur e Orozimbo; Junqueirinha, Waldemar de Brito, Friedenreich, Araken Patusca e Patrício. De coletes vermelhos, foram ao campo: Moreno; Agostinho e Ary; Raffa, Del Grande e Berti; Mário, Nenê, Celeste, Álvaro e Ermette. Os de amarelo venceram por 5 a 1, quase como um prenuncio.

Foram relacionados para o clássico, convocados para descer a serra, os seguintes atletas: Moreno, Friedenreich, Araken Patusca, Orozimbo, Sylvio Hoffmann, Armandinho (que fora poupado no treinamento), Zarzur, Iracino, Patrício, Waldemar de Brito, Hércules (também ausente dos treinos), Mário, Ermette, Celeste, Barthô e Vicente (outros dois que não se expuseram). Acompanharam os jogadores, Cássio Villaça, chefe de delegação; Francisco Júnior, dirigente; Clodoaldo Caldeira, o Clodô, técnico; e Afrodísio Xavier, o Formiga (auxiliar técnico).

Com um pouco de atraso (talvez motivado pela preliminar, onde amadores do Santos golearam o Rio D’Alva por 5 a 0), passada as 16h, começou o jogo na Vila Belmiro, aporrinhada de gente. O São Paulo, com Moreno; Sylvio Hoffmann e Iracino; Ferreira, Zarzur e Orozimbo; Patrício, Waldemar de Brito, Friedenreich, Araken Patusca e Hércules, de pronto, controlou o ritmo da partida. Antes de vazar a defesa adversária pela primeira vez, os são-paulinos já haviam obrigado o arqueiro rival a executar cinco defesas. Na sexta, aos 11 minutos, Friedenreich entrou (mais uma vez) para a história ao anotar o primeiro gol profissional da história do futebol brasileiro.

O lance começou pela esquerda: Araken passou para Hércules, que cruzou para área, onde encontrou El Tigre marcado pelo zagueiro Garcia. Fried, então, driblou o oponente e bateu de pronto no canto de Athiê, que não teve chances. 1 a 0. Atrás no placar, o Santos tentou, no restante da etapa inicial, reverter o resultado, sem sorte, porém. Já perto do fim do tempo, o Tricolor recuperou a bola e Patrício lançou Araken, que tentou o chute, mas deixou escapar a pelota, recuperada por Fried, que tocou novamente para o meia-esquerda, desta vez, acertar um potente tiro, indefensável, e marcar 2 a 0 para o São Paulo.

No segundo tempo, em um ímpeto santista nos minutos iniciais, os adversários balançaram as redes de Moreno e diminuíram a vantagem são-paulina. O tento motivou os locais, mas graças a uma atuação perfeita dos defensores Sylvio e Iracino, nada mais conseguiram. Raffa entrou no lugar de Orozimbo, contundido. Pouco depois, aos 12 minutos, Zarzur passou a Waldemar que endiabradamente fintou o marcador Meira e, livre, marcou o terceiro gol do Tricolor, provocando uma salva de aplausos da torcida adversária.

Assim, talvez esmorecidos pela própria torcida, os santistas não fizeram mais frente aos avantes do São Paulo e Waldemar de Brito, em novo lance individual de muita categoria, alargou o placar para 4 a 1, aos 20 do segundo tempo. Por fim, faltando três minutos para o fim do confronto, Araken, praticamente dentro do gol, não encontra empecilhos e anota o ponto final do Tricolor: 5 a 1. Grande estreia do futebol profissional!

(Jornal dos Esportes de 14 de março de 1933)

Porém, nem tudo foram louros na relação do São Paulo com o jovem profissionalismo. A confusão, que levaria ao caos, começou ainda mesmo em 1933. A Confederação Brasileira de Desportos, órgão alinhado à FIFA, não reconheceu o modelo remunerado do esporte e não aceitou como filiadas a APEA e a LCF, reconhecendo somente a AMEA, no Rio de Janeiro, e a FPF (não a mesma de hoje), em São Paulo. Desta maneira, em 26 de agosto de 1933, na capital paulista, nasceu a Federação Brasileira de Futebol, totalmente profissional e desvinculada da FIFA, e que organizou o peculiar e primeiro Torneio Rio-São Paulo da história – então chamado, oficial e curiosamente, de Campeonato Brasileiro.

Acontece que o ano seguinte, 1934, era ano de Copa do Mundo: o maior trunfo da CBD. Então, o dilema: os melhores jogadores eram todos profissionais e filiados a uma entidade rival. Quem representaria o Brasil na Copa da Itália? O jeito que a confederação encontrou foi, verdadeiramente, roubar os atletas da FBF, e assim, consequentemente, roubar dos clubes a ela federados.

(A Gazeta de 13 de março de 1933 – Tricolores na Vila Belmiro)

Foi desta maneira que Luizinho, Armandinho, Waldemar de Brito e Sylvio Hoffmann, do Tricolor, foram “convocados” pela CBD. Outro clube, em uma tentativa de se protegerem frente ao assédio, chegou a esconder os próprios atletas para que ninguém os levasse… O fato importante é que, desde então, o São Paulo viu-se ilhado politicamente. Outros clubes da cidade, com o tempo, trocaram de lado e, assediados pela CBD com vantajosos amistosos internacionais – que somente aquela federação poderia proporcionar – fundaram uma nova liga no Estado de São Paulo (a LPF), agora filiada diretamente a CBD, que também resolveu adotar o profissionalismo, como em um passe de mágica.

Esse fato levou a uma cisão interna no Tricolor (a mesma que levou o clube a desistir temporariamente do futebol e se unir ao CR Tietê, em 1935), pois a principal ala diretiva são-paulina não se dava com o comando da CBD, graças a perda daqueles atletas (que foram os únicos paulistas na Seleção de 1934), pois, como julgavam, a atitude impediu o time de vencer o Paulistão daquele ano, visto que os tricolores só foram derrotados uma vez naquele torneio, justamente por aquele que se tornaria campeão – o mesmo adversário que, antes, havia escondido jogadores em uma fazenda e que, meses depois, encabeçaria a fundação da liga subordinada aos antigos inimigos.

(Acervo Folha de S. Paulo – Cena de Santos x São Paulo)

12.03.1933
Amistoso Nacional
Santos (SP) Estádio da Vila Belmiro
Árbitro: Antônio Sotero de Mendonça
Renda: 14:196$000

SANTOS Futebol Clube (SP) 1 X 5 SÃO PAULO Futebol Clube (SP)

SPFC: Moreno; Sylvio Hoffmann e Iracino; Ferreira, Zarzur e Orozimbo (Raffa); Patrício, Waldemar de Brito, Friedenreich, Araken Patusca/capitão e Hércules. Técnico: Clodoaldo Caldeira

Gols: Friedenreich, 11/1; Araken Patusca, 39/1; Waldemar de Brito, 12/2; Waldemar de Brito, 20/2; Araken Patusca, 37/2

SFC: Athiê; Meira e Garcia; Waldomiro, Bisoca e Alfredo (Dino); David, Armandinho (Victor), Catitu (Strauss), Mário Seixas e Logú

Gols: Logú, 3/2

(Correio de S. Paulo de 13 de março de 1933)

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