Ilha da Madeira
Ainda jovem, no início de 1942, o São Paulo já era o quarto maior clube da cidade, com 9983 associados – mesmo não possuindo patrimônio recreativo e ainda sem conquistas de importância desde seu renascimento – superando tradicionais clubes sociais, como Pinheiros, Paulistano e Esperia. À sua frente vinham o Palestra (10.057), Corinthians (15.000) e Tietê (18.050).
Com o Pacaembu, o clube já havia sanado, temporariamente, o problema de onde treinar e mandar suas partidas. Mas a questão de proporcionar algo a mais a seus associados permanecia pendente. Foi quando a Diretoria de Esportes do Estado de São Paulo e a Associação Alemã de Esportes (Deutscher SC) procuraram o São Paulo com uma proposta.
O pequeno clube de imigrantes alemães alugava um pacato espaço no Canindé de um casal italiano, a família Vannucci, e, devido ao rompimento das relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo, buscavam uma maneira de se precaverem de futuros empecilhos. A Diretoria de Esportes ofereceu duas opções: a reforma e nacionalização de seus estatutos, ou o processo de incorporação por uma entidade já nacionalizada, brasileira.
O São Paulo, sob a figura de Décio Pacheco Pedroso, foi convidado pelo presidente da Deutscher SC, Henrique Schenk, a presenciar, no dia 13 de março de 1942, a Assembleia Geral do clube alemão que decidiria qual caminho seguiriam.
Por unanimidade a proposta de fusão foi a escolhida, sendo o SPFC escolhido como cerne dessa união, sob as condições de assumir a dívida do clube incorporado e manter as prerrogativas estatutárias de seus sócios. A Deutscher SC passava a existir como uma entidade filiada ao São Paulo, com relativa autonomia.
Cabia ao Conselho do São Paulo, entretanto, aprovar a referida associação, o que somente aconteceu em 4 de maio de 1942, antes ainda da declaração de guerra do Brasil ao Eixo (22 de agosto). A partir de então, o Tricolor, honrando os compromissos assumidos pela Deutscher, passou a alugar o Canindé junto à família Vannucci.
Somente dois anos depois, em 29 de janeiro de 1944, é que o São Paulo compraria a propriedade de 44.400 m² pelo valor de Cr$ 740.000,00 (quase equivalente ao passe de quatro Leônidas!), dos quais 340 mil foram pagos à vista (320 mil pelo São Paulo e 20 mil pela Associação Alemã de Esportes, como entidade filiada), e o restante negociado em parcelas anuais.
A Ilha da Madeira, como era conhecida a região por suas construções de madeira e pelas inundações da várzea do rio Tietê (quando ocorria, o único meio de acesso à “ilha” era o barco), abrigou o São Paulo na década em que reinou absoluto. O Tricolor, porém, nunca jogou no Canindé. Usado somente como centro de treinamento, a área administrativa também para lá se mudou em 1944.
Esporte Clube
Atletismo, basquete, beisebol, bocha, boxe, esgrima, futebol de salão, ginástica, handebol, hóquei, natação em águas abertas, patinação, remo, tênis de mesa, voleibol e xadrez. Todas essas modalidades esportivas começaram a ser praticadas no São Paulo quando o Tricolor se mudou para o Canindé. O clube estabeleceu-se como verdadeira potência poliesportiva.
Nos 44.400 m² de seu terreno às margens do rio, O São Paulo montou um complexo esportivo composto de um campo de futebol oficial, uma pista de atletismo, ginásio, salão de jogos e restaurante, alojamento para atletas, vestiários, quadras poliesportivas e baias de barcos de remo.
O investimento em reformas e melhoramentos deu resultados imediatos. O São Paulo Futebol Clube foi seis vezes campeão da Taça Brasil de Atletismo (1945, 1947, 1948, 1949, 1950 e 1951), quatorze vezes Campeão Paulista na modalidade (todas consecutivas! Entre 1944 e 1957). Venceu ainda a São Silvestre, por equipes, em sete oportunidades. Outras duas vezes individualmente, com Sebastião Alves Monteiro (1945/46).
Conquistou vários títulos também no basquete, masculino e feminino, na esgrima, no handebol (neste esporte com seus times compostos basicamente por integrantes da Deutscher SC), no hóquei, no vôlei (masculino e feminino) e no xadrez. Além do boxe, cuja academia de Aristides Jofre, porém, não se situava no Canindé.
Entre os atletas, o maior ídolo, digno de honrarias internacionais, foi Adhemar Ferreira da Silva, recordista mundial (1952 e 1955) e olímpico (1952) no salto triplo, além de inúmeras vezes vencedor nos certames paulista, brasileiro, sul-americano e panamericano. Graças a ele o emblema são-paulino foi ornado com duas estrelas douradas.
Outros grandes nomes do esporte amador destacados no período foram: Milton dos Santos, lançador de peso e disco; Olten Ayres de Abreu, corredor de 200 e 400 metros rasos e futuro árbitro de futebol; Edman Ayres de Abreu, corredor dos 400 metros rasos. Agenor da Silva, corredor campeão sul-americano dos 800 e 1500 metros que foi pai de 20 filhos. José Bento de Assis Jr, velocista recordista sul-americano. Edgard Freire, várias vezes campeão de corridas de fundo e 2º colocado na São Silvestre de 1954; Wanda dos Santos, corredora que participou das Olimpíadas de 1948; Melânia Luz, outra recordista sul-americana em provas de velocidade e Dayse de Castro, campeão panamericana de 1951, em pleno Pacaembu.
Moeda em Pé
Certamente um dos maiores centroavantes da história do futebol mundial, Leônidas da Silva transformou um clube destinado a ser grande em um gigante do futebol brasileiro. Consagrado artilheiro da Copa do Mundo de 1938, na França, quando ganhou o apelido de Homem Borracha, sua popularidade inspirou até mesmo o nome de um chocolate, o Diamante Negro – famoso ainda hoje.
Foi contratado junto ao Flamengo a peso de ouro em 1942, em transferência recorde: 200 contos de réis. Sua chegada a São Paulo, em 10 de abril, na Estação da Luz, foi marcada por uma multidão em polvorosa: 10 mil pessoas conduziram o craque nos ombros até a sede do Tricolor, na Rua Dom José de Barros.
Estreou em um clássico contra o Corinthians, em 24 de maio, com recorde de público do Pacaembu até hoje. 72.078 pessoas presentes para um belo 3 a 3. Leônidas, mesmo fora de forma, foi bem, mas sua atuação não impediu que os rivais adotassem a infame alcunha de “Bonde de 200 contos”.
Apelido que desapareceu após a narração de Geraldo José de Almeida de seu gol contra o Palestra Itália, poucos dias depois: “De bicicleta!… De bicicleta meus amigos… Taí o bonde… O bonde de 200 contos!”. Bicicleta! A jogada imortalizada por ele, embora pesquisadores afirmem que não a inventou. Não importa. Sem dúvida ninguém nunca a executou com tamanha maestria.
Em 1942 o título do Campeonato Paulista bateu na trave. Um mau jogo, aliado a uma arbitragem estranha e catastrófica, de um completo desconhecido que nunca apitou nada importante antes e nem depois – além de um cenário político complexo no jogo decisivo -, impediram o sucesso do Tricolor.
Veio então a temporada de 1943. No conselho arbitral que definiria o regulamento da competição, os presidentes das equipes debatiam favoritismos, quando um dirigente afirmou que tudo aquilo não seria necessário. Que para definir o Campeão Paulista bastaria o árbitro jogar a moeda ao ar. Se desse cara, o campeão seria o Corinthians. Se desse coroa, o Palmeiras.
-“Mas e o São Paulo?” – Questionou Décio Pacheco Pedroso, presidente do Tricolor, ao que responderam: – “Só se a moeda cair em pé”.
Se era assim… O São Paulo tratou de se reforçar, contratou Zezé Procópio, Noronha, Ruy, Zarzur e Antônio Sastre – que os rivais satirizavam por “Desastre”, por considerá-lo velho. Mais uma vez o tempo seria o senhor da razão. Na última rodada do campeonato, novamente a decisão ficou entre São Paulo e Palmeiras. O Tricolor jogava por um empate para comemorar o título. E o empate veio. 0 a 0.
A moeda caiu em pé!
O São Paulo comemorou sua segunda conquista estadual, a primeira de sua nova vida, com uma passeata que tomou as ruas da cidade, onde justamente a principal alegoria foi um carro… com uma moeda em pé!
Rolo Compressor
Depois de aberta a porteira, onde passa um boi, passa uma boiada. Com o título de 1943 iniciou-se o reinado do São Paulo no Estado. Desde que nasceu ninguém ganhou mais vezes o Paulistão, nem possui melhor aproveitamento de pontos. De sua estreia em diante, o Tricolor reinou Soberano em quatro décadas da competição, de oito possíveis.
A década de 40, em especial, foi magnífica. Cinco conquistas (1943/45/46/48/49). Não fosse pelo ano perdido de 1947, seriam seis títulos e um penta consecutivo. O esquadrão comandado por Leônidas era insuperável, a ponto de a torcida não ir ao estádio se perguntando se venceriam ou não, mas sim questionando por quanto seria a goleada.
Dentre as mais famosas, um estrondoso 9 a 1 em cima do Santos, em 1944, a maior goleada do clássico até hoje. Curiosamente, na preliminar os aspirantes massacraram o time da vila por espantosos 14 a 1. 23 gols tricolores em um só dia!
Outra vitória marcante foi o 12 a 1 no Jabaquara. A maior goleada da história do SPFC pós-1935, do Pacaembu e do Campeonato Paulista profissional. Até aí, porém, nada demais. O peculiar se encontra no fato de que o goleiro do Jabuca nessa partida era o mesmo goleiro do Santos, na goleada de um ano antes. Coitado…
Em 1945, com somente uma derrota, o Tricolor era campeão com duas rodadas de antecipação, contra o modesto Ypiranga. Já em 1946, a façanha foi épica. A arrancada começou com seis vitórias seguidas. Após impor duas derrotas ao Corinthians, que brigava pelo título, a decisão seria contra outro rival, o Palmeiras. Caso o São Paulo empatasse haveria jogo extra contra o alvinegro. Se perdesse, o alviverde daria o título ao clube irmão.
Bola rolando, jogo tenso e eletrizante. Aos 12′ do segundo tempo, o tricolor Luizinho atinge o goleiro. Pronto, a confusão estava armada. Quando a coisa acalmou, o árbitro expulsou dois de cada lado. Pior para o argentino e são-paulino Renganeschi, que no rebuliço levou uma forte pancada e, contundido, foi deslocado para a ponta esquerda, para fazer número (não eram permitidas substituições).
Praticamente com um a menos, o fim do jogo foi de muita superação e vontade. Aos 38′, Bauer avança pela ponta direita e cruza. A bola sobe, engana o goleiro e bate no travessão. De onde menos se esperava vem o toque que rola a bola mansamente para o fundo do gol. Renganeschi! Manquitolando, define o jogo e o título!
A temporada do São Paulo foi perfeita. Até hoje, nenhuma outra campanha superou essa em aproveitamento. 84,21% dos pontos disputados (à época, dois pontos por vitória): 30 vitórias, 4 empates, 4 derrotas. No Campeonato Paulista, 92,5% de aproveitamento e nenhuma derrota. Título invicto!
Gijo, Piolim, Renganeschi, Ruy, Bauer, Noronha, Luizinho, Sastre, Leônidas da Silva, Remo, Teixeirinha e outros grandes jogadores, fizeram do São Paulo o Rolo Compressor dos anos 40.
Adeus, Canindé...
O clube crescia a passos largos. Em setembro de 1949 o São Paulo inaugura uma nova sede administrativa, na Av. Ipiranga, 1267. Em verdade, também uma sede de gala, ocupando três andares ao todo, com salão de jogos e restaurante fino.
Ainda assim, o São Paulo encerrava o ano com o cinto apertado em suas finanças. A única fonte de receita considerável era a bilheteria. Mas craques que tanto animavam o público custavam caro. Então Luís Campos Aranha apresentou a Cícero Pompeu de Toledo, presidente, a solução.
Laudo Natel era um bem-sucedido diretor de banco. Desde 1946 era sócio do São Paulo, mas somente em 1952 passou a exercer funções diretivas. Após estudar as finanças do clube, apresentou sua proposta ao Dr. Cícero: um grande estádio, um estádio próprio! Ora, melhor solução não havia, afinal os times viviam de bilheteria.
Contudo, Natel foi taxativo: era preciso se desfazer do único grande bem patrimonial do clube até então, o Canindé. O mesmo Canindé que só havia sido completamente pago em janeiro de 1951. Foi então que o Tricolor Paulista ousou. Ousou de maneira jamais vista. Ousadia que não se repetiu, até hoje, no Brasil.
O São Paulo FC construiria o maior estádio particular do mundo!
– Já que é um sonho, que seja grande- diziam seus idealizadores.
Mãos à obra, o Tricolor passou a procurar terrenos que poderiam abrigar o titã. A procura era urgente, pois a Prefeitura planejava a retificação do Rio Tietê e a construção das vias marginais, que consumiriam boa parte do terreno do Canindé.
Sabe-se que, antes mesmo de Natel tomar a frente desta empreitada, em 1952, o São Paulo tentou barganhar com o município uma troca. O Canindé pelo Ibirapuera. O Canindé era pequeno para se construir um grande estádio. O Tricolor cogitou erguê-lo em área então deserta da capital, onde hoje, em parte, se encontra o clube Círculo Militar de São Paulo. Com as desapropriações decorrentes da retificação e construção da Marginal Tietê, porém, a Ilha da Madeira perderia seu potencial financeiro, e a ideia foi abandonada. Entretanto, o destino do Canindé parecia mesmo definido. Em 1952, o São Paulo lançava a pedra fundamental de seu estádio, no bairro do Morumbi. A solução para capitalizar um montante para o início da construção foi hipotecar a propriedade.
Somente em 27 de maio de 1955, o São Paulo negocia o centro esportivo. A família Saddi adquiriu o terreno por Cr$ 11.922.795,50. Desta quantia, Cr$ 4.606,180,30 foi paga diretamente a bancos credores por sua hipoteca. O que restou cobriu outras dívidas, com pequena parte investida no estádio em construção.
Foi só no final de 1956 que o São Paulo deixou de ser o Tricolor do Canindé e passou a ser, exclusivamente, o Tricolor do MorumBIS, pois Wadih Saddi, conselheiro do clube, e depois a Portuguesa, que adquiriu o terreno ainda naquele ano, permitiram que os são-paulinos lá continuassem.