O São Paulo antes do MorumBIS: Tricolor do Canindé

O São Paulo antes do MorumBIS: Tricolor do Canindé

Calendário 20/03/2024 - 13:48

Todo torcedor tricolor sabe que a casa do São Paulo é o MorumBIS, porém, em boa parte da existência do clube não foi assim. Por quase 15 anos, entre 1942 e 1956, foi a região do Canindé que abrigou os são-paulinos. Este artigo contará um pouco da história desta relação. Para maiores detalhes, porém, cabe destacar a leitura do livro: Onde a Moeda Cai de Pé.

Para muitos são-paulinos – certamente para os mais jovens – ainda é estranho imaginar que o Tricolor nem sempre foi do MorumBIS e que por mais de uma década foi do Canindé (como fora da Mooca e, bem antes, da Chácara da Floresta).

A relação do São Paulo com o bairro que atualmente abriga o estádio da Portuguesa começou em 1942, com o clube assumindo o aluguel de uma propriedade e, depois, em 1944, com a compra desse terreno. A história perpassa, também, a incorporação de uma agremiação a que, em tempos recentes, muitas calúnias foram associadas: a Associação Alemã de Esportes.

Antes da retificação do Rio Tietê – um projeto que existia desde o final do século XIX – e da construção das avenidas Marginais, nos anos 1950, a região dos bairros do Canindé, Pari, Bom Retiro e Santana abrigava várzeas do leito do rio que, a depender das estações e das chuvas, serpenteavam mais perto ou mais longe dos núcleos urbanos, conforme as cheias e vazantes.

Uma planta da região do Canindé em 1931 com a área do terreno do São Paulo, destacada em vermelho anos depois

Por todas as suas características, esses locais bucólicos eram um berçário propício ao nascimento de associações campestres e esportivas. Clubes como Espéria, Tietê, AA São Paulo e AA das Palmeiras “nasceram” e se desenvolveram nessas paragens. Mesmo o São Paulo Futebol Clube, na Chácara da Floresta, habitou terras semelhantes.

Ao mesmo tempo que os são-paulinos viam craques como Friedenreich, Luizinho e Araken marcarem muitos gols nas redes da Chácara da Floresta, no início dos anos 1930, o Tricolor tinha como vizinhos imediatos o Club de Regatas Tietê (ao nordeste), Associação Atlética São Bento (ao sul, onde entre 1917 e 1926 o Corinthians fora sediado) e os rios Tietê (ao norte) e Tamanduateí (a oeste).

A leste, do outro lado da Praça de Esportes e da atual Avenida Tiradentes, a Associação Atlética São Paulo (ainda existente) detinha os terrenos que avançavam até a Várzea do Canindé e, esporadicamente (dependia das cheias), a Ilha dos Amores. Mais próximo a esse clube, encravado junto ao rio, encontrava-se o Turnerschaft 1890, agremiação de colonos alemães.

Na sequência, sempre em direção ao “sol nascente”, surgia outro clube germânico, o Schwimm Club Stern (Clube Estrela de Natação), que, por sua vez, era fronteiriço à Sociedade Allemã de Sports Aquáticos – esta última já localizada, propriamente, na Várzea do Canindé, sendo arrendatária pelo período de 20 anos de um terreno de propriedade de um senhor chamado Antônio Vanucci, como consta registrado no livro n.º 4 do Registro Integral do Cartório do Dr. Arruda datado de 4 de maio de 1932.

No dia 1º de maio de 1932, o Estrela e a SASA se fundiram em uma nova entidade, denominada Deutscher Sport Club, que em pouco tempo se tornou um clube de respeito em esportes como atletismo, natação e, principalmente, handebol (sagrando-se vencedor do torneio que daria origem ao atual Campeonato Paulista em 1933 e 1939. Em abril de 1938, a entidade ainda incorporaria outras duas associações de origem alemã, o Donau e a Turnerschaft 1890.

Com o desenvolver da Segunda Guerra Mundial e com o maior envolvimento do Brasil no conflito, a partir de 1942, o Deutscher, como várias outras agremiações de colônias estrangeiras, sofreu sanções administrativas impostas pelo governo central no Rio de Janeiro. Por isso, a princípio, passou a se chamar Associação Alemã de Esportes, e, posteriormente, decidiu adotar um processo de nacionalização integral.

“Vai nacionalizar-se a Associação Alemã

“Em virtude de a Associação Alemã de Esportes ter solicitado sua nacionalização, o diretor da Diretoria de Esportes baixou, em data de ontem, a seguinte portaria:

“Portaria n.º 3/42 – Tendo a Associação Alemã de Esportes requerido a esta Diretoria providencias necessárias à sua nacionalização, por tratar-se de sociedade estrangeira, esta Diretoria delegou poderes ao Sr. Nelson Fernandes no sentido de providenciar tudo o que for oportuno, de acordo com as leis em vigor e demais instruções expedidas que regulam o assunto, a fim de dar fiel cumprimento ao seu mandato para satisfação dos desejos da Sociedade requerente”.

Em torno de um mês, Nelson Fernandes e o clube do Canindé elaboraram as bases dessa nacionalização, que foram apresentadas por eles ao São Paulo Futebol Clube e votadas em Assembleia Geral Extraordinária pelos sócios da agremiação alemã no dia 13 de março de 1942 e pelo Conselho do Tricolor no dia 20 posterior.

O Tricolor ratificou e aceitou a decisão da Associação Alemã de Esportes de ser incorporada pelo clube. Nos termos expedidos, o São Paulo passou, automaticamente, a ser o locatário do terreno do Canindé. Assim, o Tricolor voltou às margens do Tietê, tão bem conhecidas nos anos 1930.

A área de 70.568 m², que passou a fazer parte da história do clube, pertencia à família Vannucci, mas especificamente já era posse do casal italiano Aladino (naturalizado brasileiro em 24 de agosto de 1943) e Giuseppina Vannucci, conforme a declaração do Departamento de Estatística Territorial do Município de São Paulo, e o inventário de Antônio Vannucci e Cesira Baccei (pais de Aladino, falecidos), registrado sob n.º 24.936, como também sob o n.º 11.879 de 22 de agosto de 1935, do 6.º Ofício de Órfãos, ambos na 3.ª Circunscrição de Registro de Imóveis da Capital.

No princípio, o Tricolor permaneceu como inquilino naquelas terras, mas desde o começo investiu em melhorias. Em pouco tempo, o São Paulo já sediava no Canindé o departamento de futebol e reinaugurou o de natação e implantou outros que nunca possuíra, como os de remo, basquete, voleibol, hóquei e até mesmo xadrez. Foi um período verdadeiramente poliesportivo do clube, como jamais ocorreria novamente.

O galpão do departamento de Remo do São Paulo no Canindé
São-paulinos relaxam à beira do Rio Tietê
O atleta Milton Santos e o bode Augusto, mascote do Tricolor no período do Canindé.

As principais modalidades amadoras, entretanto, eram o atletismo e o boxe (este esporte, porém, não utilizava o complexo do Canindé, mas a Academia Zumbano, de Kid Jofre). Comandados por Dietrich Gerner, treinador proveniente do Paulistano, e encabeçados pelo maior expoente do atletismo, Adhemar Ferreira da Silva, os atletas são-paulinos foram pentacampeões da Taça Brasil e tetradecacampeões estaduais de atletismo (isso mesmo: 14 vezes seguidas).

No dia 15 de janeiro de 1944, em reunião do Conselho Deliberativo, o São Paulo decidiu comprar o terreno do Canindé. Ao custo de Cr$ 740.000,00 (quase quatro vezes mais o valor do passe de Leônidas da Silva), sendo Cr$ 320.000,00 à vista, o Tricolor entrou em acordo com Aladino e Giuseppina Vannucci pela aquisição das terras.

Forma de pagamento do Canindé:

•             Entrada: Cr$ 320.000,00
•             Depósito prévio da AAE (antigo sinal): Cr$ 20.000,00*
•             Parcelamento: duas vezes de Cr$ 200.000,00 anuais
•             Valor acrescido por juros e hipoteca: Cr$ 140.000,00
•             Custo final quando quitado: Cr$ 880.000,00**

Observações:

*Em 17 de novembro de 1941, a Associação Alemã de Esportes tentou comprar o terreno dos Vannucci por Cr$ 550.000,00, tendo depositado um sinal no valor de Cr$ 20.000,00. A transação, todavia, não teve prosseguimento por causa do decreto-lei 4.166 de 1942, que vedava a alienação de imóveis de alemães, italianos e japoneses. Somente foi possível ao São Paulo adquirir o Canindé porque Aladino se naturalizou brasileiro em 1943.

**Escritura de quitação do Quarto Ofício de Notas da Comarca da Capital, datada de 12 de novembro de 1952.

Alfredo II, Virgílio, Leopoldo, Fernando, Jacó, Ministro, Antoninho, Armando, Alfredo, Zarzur, Hélio, André, Renato, Joreca, Savério, Castanheira, Américo, King, Azambuja, Carlos (massagista). Sentados: Barrios, Remos, Sastre, Leônidas, Bauer, Piolim, Gijo, Renganeschi, Ruy, Teixeirinha, Noronha e Yeso

Enquanto o “Rolo Compressor” são-paulino reinava no Pacaembu, o Canindé se mostrava à coletividade tricolor como sendo nada mais que um recanto aprazível (embora de acesso extremamente difícil – por vezes era preciso utilizar-se de canoas, com a cheia do rio, para chegar até lá) para o treinamento de atletas, profissionais e amadores, do futebol e de outros esportes.

Com o tempo, e devido às dificuldades geográficas do terreno e da difícil logística, o São Paulo percebeu que ali não conseguiria construir o estádio que desejava. Apesar disso, as condições e estruturas que o clube implantou no Canindé, na época, transformaram-no no precursor dos modernos “Centros de Treinamento” dos grandes clubes de hoje. O complexo são-paulino abrigou até a seleção campeã da Copa do Mundo realizada no Brasil em 1950, o Uruguai.

Sobre essa permanência de dez dias no Tricolor, o jogador Ghiggia relata no documentário “Maracaná”417 que “la concentración em San Pablo era muy linda, muy tranquila”. Esse documentário, aliás, mostra raríssimas cenas de treinamento de jogadores uruguaios no gramado da sede são-paulina.

Jogadores da seleção uruguaia no Canindé, acima, e antes da partida contra a Espanha pela Copa do Mundo. Notar, à direita, o goleiro com a camisa do São Paulo.

Como agradecimentos, os uruguaios prestaram homenagem ao Tricolor. Mesmo antes do fim da competição, os jogadores celestes exaltaram o nome do São Paulo, ao entrarem em campo em uma partida de Copa do Mundo com o escudo do Tricolor no peito. Foi o que fez o goleiro Aníbal Paz (reserva) no jogo contra a Espanha, no Pacaembu. A partida, realizada em 9 de julho, acabou empatada por 2 a 2 e Paz não atuou, mas a foto (ao lado) ficou eternizada em revistas e jornais.

O Canindé, apesar de bucólico e acolhedor, era pequeno para as pretensões dos dirigentes e da crescente torcida são-paulina, de fato. Desde os primeiros anos da década de 1940, o número de associados tricolor não parava de subir. Em 1942, o Tricolor possuía 9.983 sócios, ocupando a quarta posição da tabela de associados, atrás do Tietê (18.050), do Corinthians (15.000) e do Palmeiras (10.057). Três anos depois, o São Paulo já ocupava a segunda posição no ranking, com 17.027 sócios, tecnicamente empatando em primeiro lugar com o Palmeiras, detentor de 17.294 associados.

Outro indicativo importante a ser analisado seria a média de público presente em partidas do São Paulo naquela década. Contudo, os jornais e boletins da época não costumavam fornecer essa informação e publicavam apenas a renda bruta do jogo. Porém, esses números também são interessantes para a história tricolor.

A Gazeta Esportiva de 17 de janeiro de 1952

Os “campeões de renda” do Campeonato Paulista na década de 1940 (de 1941 a 1950) eram os clubes integrantes, claro, do Trio de Ferro. Porém, foi o São Paulo o clube que mais arrecadou no período (possivelmente sendo, então, o que mais levou público às arquibancadas). O Tricolor liderou as bilheterias nos anos de 1942, 1943, 1944, 1945, 1946, 1948, 1949 e 1950. Ou seja, em oito de dez disputas. Em 1948, em especial, foi um absurdo: somou 50% a mais do que os valores do segundo colocado.

Ambas as estatísticas, de associados e de renda, foram fortemente influenciadas por um certo “Diamante Negro”. Contudo, com base nesses dois tipos de dados, é válido arriscar e dizer que, se a torcida são-paulina não era a maior da cidade, esteve em vias de sê-la.

Tudo isso só indica que a diretoria são-paulina precisava encontrar outro local para construir o estádio de porte necessário para comportar essa grande torcida. Não seria no Canindé, que ficaria ainda menor com a retificação do Rio Tietê, imposta pelo ideal progressista do engenheiro e prefeito Francisco Prestes Maia (e seguido por dirigentes posteriores), como também por questões sanitárias. Com esse projeto, já bem antigo e que contava, também, com a construção das avenidas Marginais, o São Paulo perderia boa parte da área que possuía no Canindé.

Por isso, em janeiro de 1948, o Tricolor propôs uma permuta com a municipalidade por um terreno na região do Ibirapuera. A ideia partiu do conselheiro José Aranha, depois de o prefeito, Paulo Lauro, ter entrado para o quadro social do clube. O político achou a ideia interessante e pediu que o clube oficializasse a proposta, pois a questão “batia” com o programa de governo dele, que pretendia construir, no mínimo, cinco estádios municipais por toda a cidade: Mooca, Penha, Santo Amaro, Canindé (Rua Araguaia) e, inclusive, no Ibirapuera.

Depois de a ideia se transformar em projeto e correr os trâmites legais nos departamentos municipais encarregados, para se encontrar a região mais viável e menos onerosa ao poder público, em abril daquele ano, o São Paulo já apresentava uma planta com a localização exata da pretendida praça de esportes. Ela se situaria entre as ruas Abílio Soares, Curitiba e as avenidas 23 de Maio e Brasil (atual Pedro Álvares Cabral).

O local possuía cerca de 94 mil metros quadrados, e o Tricolor lá pretendia construir um estádio com capacidade para 150 mil torcedores. Como a propriedade do Canindé ocupava aproximadamente apenas 70 mil metros quadrados, a municipalidade seria compensada pela infraestrutura que o São Paulo já havia lá erguido. E o clube, assim, não seria totalmente prejudicado pela futura desapropriação para a retificação do rio Tietê.

Na época, o terreno até poderia ser entendido como parte da área em que, em 1954, seria inaugurado o Parque do Ibirapuera. Hoje, porém, o espaço abriga o Círculo Militar de São Paulo e três pequenas praças (Túlio Fontoura, Eisenhower e Carlos Gardel), fora do espaço compreendido pela grande área verde paulistana.

Contudo, passada a empolgação inicial, o projeto não saía do papel. Resignado, o Tricolor chegou a preparar um estudo para viabilizar a construção do estádio no que restasse do Canindé, mesmo. Planta e maquete de uma obra destinada a 90 mil torcedores chegaram a ser elaboradas pelo engenheiro José de Paula Carvalho. Não deu certo.

Sem arranjo com o poder público, Cícero Pompeu de Toledo tentou, em janeiro de 1950, viabilizar, mais uma vez, um estudo para construção no próprio Canindé. Nessa ocasião, por meio de projeto elaborado pelo famoso arquiteto Ícaro de Castro Mello. Para alavancá-lo, a diretoria discutia no Conselho um plano de execução que muito se assemelharia ao realizado, posteriormente, no MorumBIS, com vendas de cadeiras cativas de maneira antecipada. Não se sabe, porém, se algo referente a esses trabalhos chegou a ser concluído, pois, em pouco tempo, eles se tornariam inviáveis, de qualquer jeito.

Um treinamento de Vicente Feola no Canindé

Passados três anos de muita negociação e nenhum avanço concreto, em 14 de dezembro de 1950, o poder público forçou a desapropriação de 26.168 m² da propriedade do São Paulo para a pavimentação da estrada marginal, indenizando o clube com a quantia simbólica e absurdamente ridícula, de Cr$ 1,00 por todo terreno! O Tricolor avaliava, para tal, o valor de Cr$ 300,00 por metro quadrado, e questionou esse preço na justiça. A decisão da corte, com o parecer final do caso, só sairia em 1958: a Prefeitura teve que desembolsar Cr$ 7.000.000,00 como indenização.

De todo modo, com apenas 44.400 m², a área tornou-se absolutamente inviável para se erguer um grande estádio. Então, em 9 de dezembro de 1953, mais de um ano depois de o Tricolor obter um grande terreno no totalmente deserto e novo bairro do Morumbi, o Conselho Deliberativo do clube aprovou colocar o Canindé à venda para possíveis interessados. Somente no dia 11 de fevereiro de 1955, os senhores Wadi, Eduardo e Raul Saddi lavraram a ata de compra da propriedade ao valor de Cr$ 11.922.795,50.

O São Paulo, porém, sofreu um prejuízo inesperado! Devido às obras municipais que alteraram a geografia das posses tricolores, a metragem oficial da área do Canindé caiu ainda mais, passando para 42.350 m². Sem essa faixa de terra, de aproximadamente 2.000 m², os são-paulinos deixaram de adquirir mais de 500 mil cruzeiros na transação (conforme folhas 21v do livro de notas n.º 702 do 4.º Tabelião de Notas da Comarca da Capital).

O Canindé, ao centro, antes e depois: em 1930 e em 1954

Resumindo a transação a sua forma de pagamento:

•             Cr$ 6.893.819,70 pagos ao São Paulo antecipadamente;
•             Cr$ 4.606.180,30 à Caixa Econômica de S. Paulo para liquidação de débito hipotecário;
•             Cr$ 422.795,50 pagos ao São Paulo ao lavrar-se o acordo.

Como o comprador, Wadi Saddi, também era sócio do clube, o São Paulo pôde permanecer no Canindé por mais algum tempo, enquanto as obras no MorumBIS avançavam. Somente quando o proprietário vendeu o terreno à Portuguesa, em janeiro de 1956, o Tricolor deixou de ser o Tricolor do Canindé. Ainda que a mudança para o MorumBIS tenha sido gradual, deixando, a Portuguesa, os tricolores mover os pertences e departamentos aos poucos, em processo finalizado no final daquele ano.

Michael Serra / Arquivo Histórico do São Paulo Futebol Clube

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